Saturday, April 21, 2012

sonho descoordenado

Morreste há tempo demais para eu não ter notado a tua ausência.
Vou-me esquecendo que te não posso encontrar por aí.

Trepava o Chiado de mão dada contigo, botas de camurça e atacadores soltos, os desenhos geométricos do lioz num chão escrito de Inverno. O teu cabelo comprido, liso, o teu sorriso maternal sem condescendência.

Saí de ti, das tuas entranhas, sou carne morena da tua pele pálida. Quando desapareceste, levaste parte do meu firmamento contigo e, embora eu não chore, sinto-me perdido neste teu legado vazio.
Para quê dizer-te que me fere este nada que me deixaste?
Tu não ouves, não sabes, não voltas.

Paredes sujas de palavras de ordem “Não à lei Barreto”, ao lado daquele quinto esquerdo do pós vinte cinco de Abril, em prédio de regime, quadrado e feio, numa Benfica suburbana, enlameada, ainda sem centros comerciais.
Sentada na cadeira de baloiço, perna cruzada, a fazer malha com o silêncio de Monsanto pela janela, num sábado metuendo de nuvens carregadas em alto contraste. À noite o assobio do vento da estrada de Benfica, o mistério sombrio da noite, um breu vagamente recortado pelo movimento das folhas das árvores nas paredes do meu quarto… e pela tua voz ao telefone do outro lado da casa.

Desço o quarto andar de madeira da Álvares Cabral e esperas-me junto às caixas de correio enquadradas em azulejos estrelados em tons de azul. Fizeste uma permanente e os teus caracóis estão cobertos de luz reflectida pelo sol que entra pelo vidro fosco numa porta metálica de Cassiano Branco.
 Vamos festejar o ser mãe e filho.

Às vezes vejo-me a pairar no ar, como se eu fosse uma projecção de ti.
Vejo – te de cima, estendida, sem vida, apenas corpo e encontro-te no meu peito.
Vives nesses relâmpagos de memória, em pequenas assombrações, imagens desarticuladas em longitudes diversas de um tempo que já não vive mas que está aqui, mesmo ao meu lado, invisível, impalpável, um sonho descoordenado.

Fazes-me falta mas nunca o diria.
Há um glaciar a cobrir-me que me não deixa sentir o calor daquilo que retive de ti.

Apetece-me questionar evidências, onde estás, porque te foste, o que te deu esse direito.
Perguntas sem préstimo que me agoniam e persistem como um tormento.

Acabaste mas ficaste.
És a mais célebre das pessoas que vivem em mim.

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